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O ESTADO DIGITAL E O DEVIDO PROCESSO ADMINISTRATIVO ELETRÔNICO

  • Foto do escritor: Paulo Sergio Araujo Mendes da Silva
    Paulo Sergio Araujo Mendes da Silva
  • 22 de out.
  • 4 min de leitura




1. Introdução


A transformação digital da administração pública brasileira é uma realidade que desafia os fundamentos clássicos do Direito Administrativo. O avanço da tecnologia, a digitalização de procedimentos e a automação de decisões impõem ao Estado a necessidade de repensar o devido processo administrativo, garantindo que os princípios constitucionais — como legalidade, publicidade, eficiência, contraditório e ampla defesa — sejam observados também no ambiente virtual.
Segundo Freitas (2023, p. 45), “o processo administrativo eletrônico surge como instrumento indispensável à eficiência administrativa, mas deve manter a integridade das garantias fundamentais do administrado”. Assim, a discussão sobre o Estado digital não se limita à mera informatização dos atos públicos, mas envolve a redefinição da própria relação entre Estado e cidadão, exigindo novas formas de controle, transparência e responsabilização.

2. A consolidação do Estado Digital


O Estado digital representa uma nova fase do Estado burocrático, que busca integrar tecnologia e governança pública. A Estratégia de Governo Digital 2020–2022, instituída pelo Decreto nº 10.332/2020, já previu a transformação digital como eixo central para a modernização da gestão pública federal. O documento estabelece como diretriz “a ampliação dos serviços públicos digitais e a integração de bases de dados governamentais” (BRASIL, 2020).
A digitalização, contudo, não é neutra. Segundo Di Pietro (2022, p. 73), “a tecnologia não substitui o direito; ela o reconfigura, impondo novos desafios de controle e responsabilidade”. Isso significa que o Direito Administrativo deve acompanhar a evolução tecnológica sem abdicar de seus princípios estruturantes.
Na prática, observa-se que portais como o gov.br, os processos eletrônicos administrativos (SEI) e os sistemas de interoperabilidade de dados têm promovido avanços em eficiência e acesso. Entretanto, a dependência crescente de plataformas digitais também impõe novos riscos, como a exclusão digital de cidadãos e a opacidade de decisões automatizadas.

3. O processo administrativo eletrônico e suas garantias


O processo administrativo eletrônico (PAE) foi consolidado no Brasil pela Lei nº 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Embora anterior à digitalização integral, a lei oferece fundamentos interpretativos aplicáveis aos meios eletrônicos.
De acordo com Meirelles (2021, p. 312), o devido processo administrativo deve assegurar ao administrado “o direito de ser ouvido, de produzir provas e de ter uma decisão motivada, ainda que em ambiente digital”. Assim, mesmo com a adoção de sistemas eletrônicos, a observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988) permanece obrigatória.
Na administração pública contemporânea, decisões automatizadas — como as baseadas em algoritmos — exigem mecanismos de auditabilidade e transparência. Nesse sentido, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018) introduziu o direito à revisão de decisões automatizadas, o que dialoga diretamente com o princípio da motivação e o dever de fundamentar atos administrativos.
Como observa Cunha (2024, p. 98), “a administração pública digital deve combinar eficiência tecnológica e responsabilidade jurídica, de modo a não transformar a automação em opacidade decisória”.

4. Desafios e perspectivas do devido processo administrativo digital


Entre os principais desafios do processo administrativo digital estão:a) garantir o acesso universal às plataformas eletrônicas, evitando exclusão digital;b) assegurar a transparência e a motivação de decisões tomadas por sistemas automatizados;c) preservar a integridade e autenticidade dos documentos eletrônicos; ed) garantir a segurança da informação e a proteção de dados pessoais.
A jurisprudência também começa a reconhecer a necessidade de adaptação do devido processo às realidades tecnológicas. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 6387, validou o uso de meios eletrônicos em atos administrativos e judiciais, desde que não comprometam o direito de defesa.
Conforme destaca Justen Filho (2023, p. 221), “a efetividade do devido processo no ambiente digital depende de um equilíbrio entre a racionalidade técnica e a proteção dos direitos fundamentais”.
A doutrina recente também propõe a ideia de um “processo administrativo digital inclusivo”, em que o uso de tecnologias não apenas simplifica procedimentos, mas amplia o acesso e a transparência das decisões públicas (SILVA; MACHADO, 2024).

5. Considerações finais


A implantação do Estado digital não pode ser compreendida apenas como uma política de inovação tecnológica, mas como uma reconfiguração jurídica e ética da relação entre o Estado e o cidadão. O processo administrativo eletrônico é uma expressão concreta dessa transformação e exige uma leitura constitucionalizada de suas garantias.
A eficiência tecnológica deve caminhar lado a lado com a legitimidade democrática. Como bem sintetiza Di Pietro (2022, p. 79), “a legalidade no ambiente digital não é menor, mas mais exigente”.
Portanto, a modernização administrativa deve preservar a essência do Direito Administrativo: a proteção do interesse público, a observância do devido processo e o respeito aos direitos fundamentais, mesmo — e sobretudo — em meio à transformação digital.

Referências


BRASIL. Decreto nº 10.332, de 28 de abril de 2020. Institui a Estratégia de Governo Digital para o período de 2020 a 2022. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 abr. 2020.
BRASIL. Constituição
(1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 fev. 1999.
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 ago. 2018.
CUNHA, Rodrigo de Almeida. Administração pública digital e o controle das decisões automatizadas. São Paulo: Atlas, 2024.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 36. ed. São Paulo: Atlas, 2022.
FREITAS, Juarez. A inteligência artificial e o direito administrativo contemporâneo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2023.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 49. ed. São Paulo: Malheiros, 2021.
SILVA, Amanda T.; MACHADO, Felipe R. Processo administrativo digital inclusivo e acessibilidade pública. Revista de Direito e Tecnologia, v. 7, n. 2, p. 150-170, 2024.
 
 
 
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