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Supremacia do Interesse Público: Revisitando um Princípio-Matriz do Direito Administrativo em uma Perspectiva Crítica

  • Foto do escritor: Paulo Sergio Araujo Mendes da Silva
    Paulo Sergio Araujo Mendes da Silva
  • 4 de set.
  • 5 min de leitura


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Resumo: O presente artigo examina o princípio da supremacia do interesse público, considerado o pilar fundamental do regime jurídico-administrativo brasileiro. Analisa sua conceituação clássica, a partir da visão de doutrinadores renomados como Hely Lopes Meirelles e Celso Antônio Bandeira de Mello, e sua manifestação em prerrogativas estatais. Aborda, em seguida, as ponderações e limites impostos pela jurisprudência contemporânea, que, à luz do Estado Democrático de Direito, vem mitigando a aplicação irrestrita do princípio em favor da harmonização com os direitos e garantias individuais. Conclui-se que a supremacia, embora essencial, deve ser interpretada e aplicada de forma proporcional, evitando-se o arbítrio e garantindo a realização do interesse público primário, que é a razão de ser da própria Administração.

Palavras-chave: Direito Administrativo. Supremacia do Interesse Público. Ponderação. Interesse Primário. Interesse Secundário.


1 INTRODUÇÃO


O Direito Administrativo, em sua gênese, foi moldado por dois princípios cardeais: a supremacia e a indisponibilidade do interesse público. Dentre eles, a supremacia do interesse público sobre o interesse privado sempre se destacou como a pedra angular do regime jurídico-administrativo, legitimando as prerrogativas e os poderes especiais concedidos à Administração para o cumprimento de suas finalidades. Tradicionalmente, este princípio conferiu ao Estado uma posição de superioridade nas relações com os particulares, permitindo-lhe atuar de modo unilateral e coercitivo em prol da coletividade.

No entanto, o avanço do Estado Democrático de Direito e a consolidação dos direitos fundamentais impõem uma revisão crítica de sua aplicação. A jurisprudência e a doutrina mais moderna têm demonstrado que o dogma da supremacia não pode ser absoluto, devendo ser ponderado com outros princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, a proporcionalidade e a razoabilidade. Este artigo se propõe a analisar essa evolução, mostrando como a supremacia do interesse público, em vez de um cheque em branco para o poder estatal, torna-se um princípio-guia que exige cautela, fundamentação e, acima de tudo, a busca pelo interesse genuinamente público.


2 O PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO: FUNDAMENTOS TEÓRICOS


A supremacia do interesse público é a própria condição de existência do Direito Administrativo, um pressuposto lógico inerente a qualquer sociedade organizada. O jurista Hely Lopes Meirelles (1995) define-o como um princípio geral de direito, afirmando que "o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é princípio geral de direito inerente a qualquer sociedade. É a própria condição de sua existência."

Em sua essência, o princípio confere à Administração prerrogativas para a gestão do bem comum. Isso se manifesta em poderes como o de polícia administrativa, a autoexecutoriedade dos atos, a desapropriação e a possibilidade de restrições a direitos individuais em nome da coletividade.

A doutrina, notadamente por Celso Antônio Bandeira de Mello (2017), aprofundou o conceito ao distinguir entre interesse público primário e interesse público secundário. O interesse público primário é a finalidade última do Estado, a razão de ser de sua existência: a busca pela justiça, pelo bem-estar social e pela segurança da coletividade. Por outro lado, o interesse público secundário é o interesse do próprio Estado enquanto pessoa jurídica (ex: a arrecadação de multas, o aumento de patrimônio). A supremacia, portanto, só se justifica para a realização do interesse primário. Conforme Mello (2017), não se pode confundir o interesse do aparelho administrativo com o interesse da sociedade.


3 A SUPREMACIA EM CONFLITO COM O INTERESSE PRIVADO: A PONDERAÇÃO JURISPRUDENCIAL


Historicamente, a supremacia do interesse público foi utilizada como fundamento para atos estatais que, em alguns casos, resultavam em excessos. No entanto, a partir da Constituição Federal de 1988 e do reconhecimento de um Estado Democrático de Direito, a jurisprudência, em especial a do Supremo Tribunal Federal (STF), passou a adotar a técnica da ponderação de princípios.

Essa nova abordagem, influenciada por teóricos como Robert Alexy (2006), reconhece que o Direito Administrativo não é um sistema de regras absolutas, mas de princípios que podem colidir. A supremacia do interesse público, nesse contexto, não suprime o direito individual, mas deve ser harmonizada com ele. Isso significa que, em cada caso concreto, o interesse público deve ser comprovado e sua prevalência justificada, evitando-se o uso arbitrário do poder estatal.

A respeitada autora Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2018) salienta que a supremacia não pode ser vista como um princípio que autoriza a Administração a agir de forma desvinculada da lei. Pelo contrário, ela deve ser interpretada à luz da Constituição e dos direitos fundamentais, sendo que a ausência de lei específica para garantir a supremacia não legitima a atuação discricionária do administrador.


4 CRÍTICAS E A NECESSIDADE DE LIMITES


Apesar de sua importância, o princípio da supremacia do interesse público enfrenta críticas pertinentes no cenário atual. A principal delas é o risco de sua utilização como justificativa para o arbítrio estatal, sobretudo quando não há um controle efetivo sobre a definição do que é "interesse público". A diferenciação proposta por Celso Antônio entre interesse primário e secundário é crucial para combater esse desvio de finalidade. O administrador não pode utilizar a supremacia para atender a um interesse particular seu ou do governo, mas apenas o da coletividade.

O princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) atua como um limitador da supremacia, assegurando que o sacrifício do direito individual seja o mínimo necessário para a realização do interesse público. Em outras palavras, a restrição deve ser a mais branda possível, adequada para atingir o objetivo público e, em última análise, o bem que se promove deve ser maior do que o mal que se causa.


5 CONCLUSÃO


O princípio da supremacia do interesse público, mais do que um dogma, é a espinha dorsal de um Direito Administrativo comprometido com a sociedade. Ele legitima a atuação do Estado, mas não a qualquer custo. A superação da visão autoritária do século XX e a adoção de uma perspectiva constitucional, pautada na ponderação e na proporcionalidade, são o caminho para garantir que a Administração Pública cumpra sua missão sem ferir os direitos fundamentais.

Em um cenário de crescentes demandas sociais e de complexidade nas relações entre o público e o privado, a supremacia não é uma ideia ultrapassada. Pelo contrário, é o princípio que nos lembra da razão de ser do Estado: servir e promover o bem-estar de toda a coletividade. A Administração Pública do futuro, para ser efetiva, precisa aplicar esse princípio com a sabedoria e a prudência que o Estado Democrático de Direito exige.


6 REFERÊNCIAS


MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 1995.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2017.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O princípio da supremacia do interesse público: sobrevivência diante dos ideais do neoliberalismo. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira (Org.). Supremacia do Interesse Público e outros Temas Relevantes do Direito Administrativo. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 85-117.

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 591033. Relator: Min. Eros Grau, julgado em 07/04/2010, DJe 07-06-2010.

 
 
 

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